O Corpo Fala: Desvendando a Sensibilização e a Interocepção na Fisioterapia e Osteopatia

Escrito pelo Prof. Dr. Bruno Moreno (D.O.) – @brunogdmoreno

Por muito tempo, a dor e as disfunções do corpo foram compreendidas principalmente sob uma ótica mecânica: algo estava “fora do lugar” ou danificado. No entanto, a neurociência moderna nos convida a uma perspectiva mais profunda e integrada, revelando que o nosso sistema nervoso desempenha um papel central na forma como percebemos e reagimos à dor. Um artigo seminal publicado na revista Frontiers in Neuroscience em 2016, intitulado “Sensitization and Interoception as Key Neurological Concepts in Osteopathy and Other Manual Medicines”, destaca dois conceitos revolucionários para a Fisioterapia e a Osteopatia: a sensibilização e a interocepção.

Este artigo propõe um novo “paradigma interoceptivo” para entender e tratar nossos pacientes, especialmente aqueles com dor crônica e condições complexas. Para os fisioterapeutas, compreender esses mecanismos não é apenas uma atualização teórica, mas uma ferramenta poderosa para otimizar os resultados clínicos.

O que é Interocepção? O Nosso “Sexto Sentido”

Imagine ter um sentido que te informa sobre o que está acontecendo dentro do seu corpo: a pulsação do seu coração, a respiração dos seus pulmões, a digestão no seu estômago. Isso é a interocepção. Não se trata apenas de sentir a fome ou a bexiga cheia, mas de uma representação contínua e momento a momento das sensações corporais internas. É como o seu cérebro “escuta” o seu corpo.

A interocepção é fundamental para o nosso bem-estar. Ela influencia nossas emoções, nossa autoconsciência e até mesmo nossa capacidade de tomar decisões. Quando a interocepção está alterada, podemos ter dificuldades em identificar e regular nossas emoções, e isso está fortemente ligado a condições como dor crônica, transtornos de ansiedade e depressão.

O que é Sensibilização? Um Alarme “Super-Sensível”

Já a sensibilização pode ser entendida como um estado em que o nosso sistema nervoso se torna excessivamente reativo ou “super-sensível” a estímulos. Pense no sistema de alarme de uma casa: em um estado normal, ele só dispara com uma ameaça real. Em um estado de sensibilização, o alarme se torna tão sensível que pode disparar com um vento mais forte ou um gato passando.

Existem dois tipos principais de sensibilização:

  1. Sensibilização Periférica: Ocorre na área da lesão ou inflamação. As terminações nervosas locais ficam mais sensíveis, amplificando os sinais de dor. É por isso que uma área machucada dói mais ao toque.
  2. Sensibilização Central: É um fenômeno mais complexo que acontece no cérebro e na medula espinhal. O sistema nervoso central se torna hiperexcitável, e a dor pode ser percebida de forma amplificada, mesmo com estímulos leves ou na ausência de uma lesão contínua. Isso explica por que a dor pode se espalhar, persistir por muito tempo após a cicatrização de um tecido ou ser desproporcional à lesão inicial. Condições como dor lombar crônica, fibromialgia, enxaquecas e dor neuropática frequentemente envolvem sensibilização central.

A Conexão Vital: Interocepção, Sensibilização e o Sistema Nervoso Autônomo (SNA)

A interocepção e a sensibilização estão intrinsecamente ligadas ao Sistema Nervoso Autônomo (SNA), o “piloto automático” do nosso corpo, responsável por funções involuntárias como batimentos cardíacos, digestão e resposta ao estresse. O SNA possui ramos simpático (resposta de “luta ou fuga”) e parassimpático (“descanso e digestão”).

A interocepção fornece informações cruciais para o SNA. Quando o sistema está sensibilizado ou a interocepção está alterada, o SNA pode entrar em desequilíbrio, mantendo o corpo em um estado de alerta constante. Esse “desgaste” contínuo, conhecido como carga alostática, pode perpetuar a sensibilização e a dor crônica.

O Papel Transformador da Fisioterapia e Osteopatia

Para fisioterapeutas e osteopatas, entender esses conceitos abre novas portas para o tratamento. As terapias manuais, que historicamente focavam na mecânica, agora são vistas como poderosas ferramentas para influenciar o sistema nervoso e modular a sensibilização através das vias interoceptivas.

O artigo destaca que a Osteopatia, por exemplo, pode:

  • Reduzir a inflamação: Estudos sugerem que a manipulação osteopática pode diminuir substâncias pró-inflamatórias no corpo.
  • Modular o Sistema Nervoso Autônomo: As técnicas osteopáticas demonstraram influenciar o SNA, promovendo um efeito parassimpático, ou seja, ajudando o corpo a sair do estado de “alerta” e entrar em “descanso e reparo”.
  • Influenciar a Sensibilização: Ao modular a inflamação e o SNA, as terapias manuais podem interromper o ciclo vicioso da sensibilização, ajudando o sistema nervoso a “recalibrar” sua resposta à dor.

É importante ressaltar que o “toque técnico” do terapeuta manual é crucial. Não é qualquer toque, mas um toque específico e habilidoso que pode ativar as vias interoceptivas e influenciar o estado de sensibilização.

Por que isso é Crucial para Fisioterapeutas?

Para os fisioterapeutas, adotar o “paradigma interoceptivo” significa:

  • Uma Compreensão Mais Holística: Ir além da queixa musculoesquelética isolada e entender o paciente como um todo, considerando a interação entre corpo, mente e sistema nervoso.
  • Diagnóstico e Tratamento Mais Precisos: Reconhecer os sinais de sensibilização e interocepção alterada permite abordagens terapêuticas mais eficazes para condições de dor crônica e complexas.
  • Otimização dos Resultados: Ao influenciar diretamente os mecanismos neurológicos subjacentes à dor, os fisioterapeutas podem ajudar os pacientes a alcançar uma recuperação mais completa e duradoura.

Este novo olhar sobre a dor e o corpo, fundamentado na neurociência, não apenas valida a importância das terapias manuais, mas também as eleva a um patamar de intervenção neurológica. Ao compreender como o corpo “fala” através da interocepção e como ele pode se tornar “super-sensível” pela sensibilização, os fisioterapeutas podem oferecer um cuidado ainda mais transformador.

Referências:

  1. D’Alessandro, G., Cerritelli, F., & Cortelli, P. (2016). Sensitization and Interoception as Key Neurological Concepts in Osteopathy and Other Manual Medicines. Frontiers in Neuroscience, 10, 100. doi: 10.3389/fnins.2016.00100